Luciano Ramalho Ramalho é autor do livro Fluent Python (O'Reilly, 2014) e sócio/professor em Python.pro.br, oferecendo cursos in-company e também online. Foi diretor técnico do Brasil Online, primeiro portal da Abril na Web, lançado uma semana antes do UOL. Depois liderou times para os sites IDG Now, BOL, UOL, AOL Brasil e outros, usando Python desde 1998. Palestrante em eventos internacionais como PyCon US, OSCON e FISL, ajudou a criar a Associação Python Brasil e foi seu presidente. É membro da Python Software Foundation e fundador do Garoa Hacker Clube, o primeiro hackerspace do Brasil.
Publicado em:

Tue 24 February 2015

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Tuplas mutantes em Python

Por Luciano Ramalho, autor do livro Fluent Python (O'Reilly, 2014)

See also the original article in English: http://radar.oreilly.com/2014/10/python-tuples-immutable-but-potentially-changing.html

Tuplas em Python têm uma característica surpreendente: elas são imutáveis, mas seus valores podem mudar. Isso pode acontecer quando uma tuple contém uma referência para qualquer objeto mutável, como uma list. Se você precisar explicar isso a um colega iniciando com Python, um bom começo é destruir o senso comum sobre variáveis serem como caixas em que armazenamos dados.

Em 1997 participei de um curso de verão sobre Java no MIT. A professora, Lynn Andrea Stein - uma premiada educadora de ciência da computação - enfatizou que a habitual metáfora de "variáveis como caixas" acaba atrapalhando o entendimento sobre variáveis de referência em linguagens OO. Variáveis em Python são como variáveis de referência em Java, portanto é melhor pensar nelas como etiquetas afixadas em objetos.

Eis um exemplo inspirado no livro Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá, de Lewis Carroll.

imagem Alice Através do Espelho e O Que Ela Encontrou Por Lá

Tweedledum e Tweedledee são gêmeos. Do livro: “Alice soube no mesmo instante qual era qual porque um deles tinha 'DUM' bordado na gola e o outro, 'DEE'”.

exemplo 1

Vamos representá-los como tuplas contendo a data de nascimento e uma lista de suas habilidades:

>>> dum = ('1861-10-23', ['poesia', 'fingir-luta'])
>>> dee = ('1861-10-23', ['poesia', 'fingir-luta'])
>>> dum == dee
True
>>> dum is dee
False
>>> id(dum), id(dee)
(4313018120, 4312991048)

É claro que dum e dee referem-se a objetos que são iguais, mas que não são o mesmo objeto. Eles têm identidades diferentes.

Agora, depois dos eventos testemunhados por Alice, Tweedledum decidiu ser um rapper, adotando o nome artístico T-Doom. Podemos expressar isso em Python dessa forma:

>>> t_doom = dum
>>> t_doom
('1861-10-23', ['poesia', 'fingir-luta'])
>>> t_doom == dum
True
>>> t_doom is dum
True

Então, t_doom e dum são iguais - mas Alice acharia tolice dizer isso, porque t_doom e dum referem-se à mesma pessoa: t_doom is dum.

exemplo 2

Os nomes t_doom e dum são apelidos. O termo em inglês "alias" significa exatamente apelido. Gosto que os documentos oficiais do Python muitas vezes referem-se a variáveis como “nomes“. Variáveis são nomes que damos a objetos. Nomes alternativos são apelidos. Isso ajuda a tirar da nossa mente a ideia de que variáveis são como caixas. Qualquer um que pense em variáveis como caixas não consegue explicar o que vem a seguir.

Depois de muito praticar, T-Doom agora é um rapper experiente. Codificando, foi isso o que aconteceu:

>>> skills = t_doom[1]
>>> skills.append('rap')
>>> t_doom
('1861-10-23', ['poesia', 'fingir-luta 'rap'])
>>> dum
('1861-10-23', ['poesia', 'fingir-luta 'rap'])

T-Doom conquistou a habilidade rap, e também Tweedledum — óbvio, pois eles são um e o mesmo. Se t_doom fosse uma caixa contendo dados do tipo str e list, como você poderia explicar que uma inclusão à lista t_doom também altera a lista na caixa dum? Contudo, é perfeitamente plausível se você entende variáveis como etiquetas.

A analogia da etiqueta é muito melhor porque apelidos são explicados mais facilmente como um objeto com duas ou mais etiquetas. No exemplo, t_doom[1] e skills são dois nomes dados ao mesmo objeto da lista, da mesma forma que dum e t_doom são dois nomes dados ao mesmo objeto da tupla.

Abaixo está uma ilustração alternativa dos objetos que representam Tweedledum. Esta figura enfatiza o fato de a tupla armazenar referências a objetos, e não os objetos em si.

exemplo 3

O que é imutável é o conteúdo físico de uma tupla, que armazena apenas referências a objetos. O valor da lista referenciado por dum[1] mudou, mas a identidade da lista referenciada pela tupla permanece a mesma. Uma tupla não tem meios de prevenir mudanças nos valores de seus itens, que são objetos independentes e podem ser encontrados através de referências fora da tupla, como o nome skills que nós usamos anteriormente. Listas e outros objetos imutáveis dentro de tuplas podem ser alterados, mas suas identidades serão sempre as mesmas.

Isso enfatiza a diferença entre os conceitos de identidade e valor, descritos em Python Language Reference, no capítulo Data model:

Cada objeto tem uma identidade, um tipo e um valor. A identidade de um objeto nunca muda, uma vez que tenha sido criado; você pode pensar como se fosse o endereço do objeto na memória. O operador is compara a identidade de dois objetos; a função id() retorna um inteiro representando a sua identidade.

Após dum tornar-se um rapper, os irmãos gêmeos não são mais iguais:

>>> dum == dee
False

Temos aqui duas tuplas que foram criadas iguais, mas agora elas são diferentes.

O outro tipo interno de coleção imutável em Python, frozenset, não sofre do problema de ser imutável mas com possibilidade de mudar seus valores. Isso ocorre porque um frozenset (ou um set simples, nesse sentido) pode apenas conter referências a objetos hashable (objetos que podem ser usados como chave em um dicionário), e o valor destes objetos, por definição, nunca pode mudar.

Tuplas são comumente usadas como chaves para objetos dict, e precisam ser hashable - assim como os elementos de um conjunto. Então, as tuplas são hashable ou não? A resposta certa é algumas tuplas são. O valor de uma tupla contendo um objeto mutável pode mudar, então uma tupla assim não é hashable. Para ser usada como chave para um dict ou elemento de um set, a tupla precisa ser constituída apenas de objetos hashable. Nossas tuplas de nome dum e dee não são hashable porque cada elemento contem uma referência a uma lista, e listas não são hashable.

Agora vamos nos concentrar nos comandos de atribuição que são o coração de todo esse exercício.

A atribuição em Python nunca copia valores. Ela apenas copia referências. Então quando escrevi skills = t_doom[1], não copiei a lista referenciada por t_doom[1], apenas copiei a referência a ela, que então usei para alterar a lista executando skills.append('rap').

Voltando ao MIT, a Profa. Stein falava sobre atribuição de uma forma muito cuidadosa. Por exemplo, ao falar sobre um objeto gangorra em uma simulação, ela dizia: “A variável g é atribuída à gangorra“, mas nunca “A gangorra é atribuída à variável g “. Em se tratando de variáveis de referência, é mais coerente dizer que a variável é atribuída ao objeto, e não o contrário. Afinal, o objeto é criado antes da atribuição.

Em uma atribuição como y = x * 10, o lado direito é computado primeiro. Isto cria um novo objeto ou retorna um já existente. Somente após o objeto ser computado ou retornado, o nome é atribuído a ele.

Eis uma prova disso. Primeiro criamos uma classe Gizmo, e uma instância dela:

>>> class Gizmo:
...     def __init__(self):
...         print('Gizmo id: %d' % id(self))
...
>>> x = Gizmo()
Gizmo id: 4328764080

Observe que o método __init__ mostra a identidade do objeto tão logo criado. Isso será importante na próxima demonstração.

Agora vamos instanciar outro Gizmo e imediatamente tentar executar uma operação com ele antes de atribuir um nome ao resultado:

>>> y = Gizmo() * 10
Gizmo id: 4328764360
Traceback (most recent call last):
  ...
TypeError: unsupported operand type(s) for *: 'Gizmo' and 'int'
>>> 'y' in globals()
False

Este trecho mostra que o novo objeto foi instanciado (sua identidade é 4328764360) mas antes que o nome y possa ser criado, uma exceção TypeError abortou a atribuição. A verificação 'y' in globals() prova que não existe o nome global y.

Para fechar: sempre leia lado direito de uma atribuição primero. Ali o objeto é computado ou retornado. Depois disso, o nome no lado esquerdo é vinculado ao objeto, como uma etiqueta afixada nele. Apenas esqueça aquela idéia de variáveis como caixas.

Em relação a tuplas, certifique-se que elas apenas contenham referências a objetos imutáveis antes de tentar usá-las como chaves em um dicionário ou itens em um set.

Este texto foi originalmente publicado no blog da editora O'Reilly em inglês. A tradução para o português foi feita por Paulo Henrique Rodrigues Pinheiro. O conteúto é baseado no capítulo 8 do meu livro Fluent Python. Esse capítulo, intitulado Object references, mutability and recycling também aborda a semântica da passagem de parâmetros para funções, melhores práticas para manipulação de parâmetros mutáveis, cópias rasas (shallow copies) e cópias profundas (deep copies), e o conceito de referências fracas (weak references) - além de outros tópicos. O livro foca em Python 3 mas grande parte de seu conteúdo se aplica a Python 2.7, como tudo neste texto.
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